By Isabel Moreira in Expresso – 05.12.2019
No dia mundial do fumador (17 de novembro), Emília Nunes disse à Lusa que ainda não é possível responder com rigor se os “novos” produtos do tabaco (cigarros eletrónicos e cigarros aquecidos) são mais ou menos nocivos para a saúde do que o tabaco. Alega que há falta de informação científica independente (fica por saber o que impede o Estado de a produzir), fala no aparecimento recente de “mortes”, insiste na lógica da incerteza da diminuição do risco, afirma que a presença de nicotina nos novos produtos cria dependência, pelo que compromete a liberdade relativamente ao consumo, alerta para a ideia equivocada passada pela indústria segundo a qual consumir estes produtos é deixar de fumar e termina afirmando que se deve optar pela opção tudo ou nada, isto é, não fumar.
Nestas declarações bem-intencionadas há muitos equívocos, quer do ponto de vista dos nossos valores jurídico-constitucionais, quer do ponto de vista do estado da arte relativamente aos chamados novos produtos do tabaco.
Começando pelos segundos, em 2019 é perfeitamente possível dizer-se com rigor que os novos produtos do tabaco (assim designados apesar de os cigarros eletrónicos não conterem tabaco) são muito menos prejudicais para a saúde do que os cigarros normais.
É verdade que à falta de estudos por parte de laboratórios nacionais os fabricantes de novos produtos do tabaco produziram uma série de estudos comprovando o que afirmei, estudos esses que podem ser acusados de parcialidade, mas a verdade é que foram apresentados nomeadamente na Assembleia da República sem, até agora, contestação científica.
Em todo o caso, se todos queremos estudos independentes numa matéria tão importante de saúde pública e de liberdade individual, nada nos impede de recorrer a estudos desse tipo levados a cabo, por exemplo, por Ministérios da Saúde de outros países.
É o caso do National Institute for Health and Environment, Minister of Public Health, Welfare and Sport (RIVM): “Alternative tobacco products: harm reduction? Tobacco and related products that may possibly be less harmful than cigarettes” – September 2016 – trata-se de um relatório do National Institute for Public Health and the Environment (RIVM), instituto de investigação holandês que é também uma agência independente do Ministério de Saúde Pública da Holanda, que publicou em holandês um relatório a avaliar produtos de dano reduzido incluindo não só cigarros eletrónicos mas também tabaco aquecido.
Outro exemplo é o E-cigarettes in Stop Smoking Services, Cancer Research UK, July 2016, que refere os cigarros eletrónicos como forma de cessação, também em comparação por exemplo com terapias de substituição de nicotina.
Um terceiro estudo independente é o “E-cigarette use in public places: striking the right balance”, Bauld L., et al., The BMJ, 7 November 2016, os autores incluem a Public Health England e refere que até ao momento a evidência não apoia uma política para proibir os cigarros eletrónicos em espaços fechados.
Finalmente, veja-se o Safety evaluation and risk assessment of electronic cigarettes as tobacco cigarette substitutes: a systematic review, Konstantinos Farsalinos and Riccardo Polosa, Therapeutic Advances in Drug Safety, April 2014.
Para além dos estudos, que são abundantes, é possível proceder-se a testes toxicológicos, como tão bem explicou o Professor Doutor Manuel Pais Clemente, um insuspeito pneumologista feliz com a enorme redução de risco que estes novos produtos significam para um problema de saúde pública tão grave e que aqui não se põe em causa.
Emília Nunes fala em “mortes”. De que mortes fala? Os cigarros normais matam cerca de 7 milhões de pessoas por ano. Já vimos que os cigarros eletrónicos e os cigarros aquecidos fazem muito menos mal à saúde do que os cigarros normais e, acrescento, são, neste momento, a via escolhida por uma incomensurável quantidade de pessoas para deixar de fumar. Os cigarros eletrónicos estão no mercado americano há décadas e este ano foram reportados 450 casos de doenças pulmonares (houve algumas mortes) sendo que não há nexo de causalidade entre estas doenças e os próprios cigarros eletrónicos. Foi apurado que os doentes em causa utilizavam os cigarros eletrónicos para consumir nomeadamente THC e produtos derivados da canábis e não os produtos regulados.
Não há um único caso como estes reportados nos EUA em Portugal, pelo que, se por um lado só se entende a referência em abstrato a “mortes” como técnica alarmista, por outro lado teme-se que a DGS não pugne pelo incentivo ao consumo (em qualquer caso, de resto) no mercado regulado/fiscalizado e nunca no mercado desregulado.
Emília Nunes diz que a nicotina cria adição, pelo que ficamos mais dependentes do consumo, que há uma falsa ideia de que deixamos de fumar e que é melhor o tudo ou nada. É aqui que entram os nossos valores jurídico-constitucionais.
Os líquidos que são introduzidos nos cigarros eletrónicos podem ou não conter nicotina. Os cigarros aquecidos contêm nicotina. Como quem trabalha na saúde sabe, os fumadores são dependentes de cigarros por causa da nicotina, mas morrem por causa do fumo, porque é no fumo que estão os milhares de substâncias tóxicas que, aliadas à combustão, são terríveis para a saúde.
A novidade dos novos produtos do tabaco foi isolar a nicotina e “livrarem-se” da parte nociva. O facto de a nicotina ser aditiva é irrelevante. É uma escolha livre do consumidor. A cafeina também é aditiva e espero não receber instruções públicas no sentido de deixar de beber café para não ficar “dependente do consumo”. A minha opção por ser dependente de cafeina, nicotina ou qualquer outra substância análoga é do foro da minha liberdade individual e o Estado não pode, em caso algum, sob pena de atentar contra ela, pôr em causa as minhas escolhas enquanto elas não afetarem terceiros. O Estado pode e deve informar-se acerca dos riscos para a minha saúde daquilo que eu consumo, não pode decidir o que consumo e, no caso, não pode fundamentar uma política pública de saúde com base no equívoco da “má” dependência.
Por outro lado, apesar de a lei ter equiparado para determinados efeitos vapor e fumo, efetivamente quem só utiliza cigarros eletrónicos não fuma. Vapor não é fumo, pelo que não é ilusão alguma esta de dizermos que deixámos de fumar. De resto, isto continua a ser connosco, consumidores, devendo o Estado abster-se de atitudes paternalistas, como estas que nos acodem de alegadas ilusões para nos encaminharem para o mundo comportamental unívoco e padronizado do não-fumador-de-coisa-nenhuma.
A lógica do “é melhor não fumar nada” é a lógica do “encosta à parede”, a lógica do tudo ou nada, o tal padrão comportamental a que uma sociedade plural deve ser avessa. As pessoas não conseguem todas deixar de fumar pura e simplesmente deixando de fumar. Mal andaria o Estado numa matéria de saúde pública tão importante se não acolhesse os estudos que demonstram isto: “os cigarros eletrónicos ajudam os seus utilizadores a deixar de fumar. A conclusão consta de um estudo publicado esta quarta-feira no “New England Journal of Medicine” e, ainda que os resultados apresentados falem de um grau de sucesso que à primeira vista não impressiona – 18% -, os investigadores apontam que esta é uma alternativa duas vezes mais eficaz do que outros recursos habitualmente usados para abandonar o tabaco”.
Entre saúde pública e liberdade não se esqueça ainda o Estado português, tão bem conotado com a redução de riscos, de apostar também numa política fiscal inteligente, não enveredando pelo castigo dos produtos que estão a revolucionar a saúde de milhares de pessoas todos os dias.
By Isabel Moreira in Expresso – 05.12.2019